domingo, 25 de fevereiro de 2007

Prolapso legal: o aborto e a procriação medicamente assistida

E porque continuo revoltada:
"Para um número considerável de portugueses, o debate sobre o aborto representou um exercício de cidadania especialmente sensível e complexo. Os cerca de 20% de cidadãos com problemas de fertilidade acompanharam a discussão que antecedeu a realização do referendo frequentemente divididos entre a angústia de uma pergunta inoportuna e a vontade de tomar posição.

Independentemente das opiniões de cada um sobre o aborto, foi manifesto o desconforto e o dramatismo com que esta comunidade se aproximou (ou não) das mesas de voto no último dia 11 de Fevereiro. A crer pelos resultados, boa parte recusou o mundo a preto e branco dos que apenas perscrutaram no país amigos ou inimigos da vida, acabando por distinguir o que de facto estava em causa. Mas algo de tremendamente perturbador vem sucedendo nesta fase do pós-referendo e respectivo corrupio legislativo.

Há duas décadas que se aguarda por uma lei que efectivamente regule a procriação medicamente assistida (PMA) em Portugal. Esta lei foi publicada em Diário da República, no último dia 26 Julho de 2006, e deveria ser regulamentada no prazo máximo de 180 dias, entretanto vencidos. A demora na regulamentação da Lei não é algo que possa ser acometido apenas ao silêncio informe da «nação das secretarias» de que falava Garrett. Pelo meio estão centenas de milhares de pessoas em sofrimento, na sua grande maioria, traídas por uma falência orgânica em crescimento exponencial no mundo moderno. Estudos mostram inclusive que os níveis de ansiedade causados pela infertilidade são comparáveis aos malefícios provocados por um cancro ou por problemas cardíacos.

O atraso na regulamentação do acesso, do financiamento e das práticas de PMA torna o Estado co-responsável por um verdadeiro desastre social e humano, apenas ofuscado pela reserva que carateriza matéria tão pessoal e íntima como esta. Entre o trauma físico e psicológico, as deslocações obrigatórias ao estrangeiro, a dimimuição da natalidade, o acesso condicionado ao sistema público de saúde ou a sua proibição a maiores de 38 anos, anda toda uma outra nação a desesperar pela regulamentação da Lei da PMA. Ainda há alguns meses foi bloqueada a criação de um banco público de gâmetas no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, com o argumento de que a lei não estava regulamentada. Ora, após o referendo, tivemos entretanto conhecimento de que o mesmo Estado se apressa para antecipar tacitamente a aplicação da Lei sobre a interrupção voluntária da gravidez (IVG), antes de esta estar sequer redigida!

Qual o motivo para este tão surpreendente, tão injusto e tão grotesco prolapso legal? Será hoje a maternidade (e a paternidade) uma agenda estruturalmente conservadora, a ponto de confundir o discernimento da mesma esquerda liberal que em nome da vida e da liberdade lutou igualmente pela lei da PMA e por esta lei da IVG? Não deveriam matérias relacionadas com a vida e a liberdade ter, pelo menos, igual prioridade?"

Fernando Oliveira (Membro da Direcção da Associação Portuguesa de Infertilidade)